Migrações transcendentais do quotidiano

 

O trabalho de Yuga Hatta flutua entre uma sensibilidade etérea de um papel muito fino que quer ser nuvem e um pensamento profundo que não ignora a espuma dos dias, porque é dessa espuma que é feito o oceano onde pretende mergulhar, sentindo o desconhecido.

Na exposição individual de Yuga Hatta na Mute encontramos a oscilação subtil entre tradição e revolução a penetrar um público que é confrontado com uma multiplicidade de camadas de significados do gesto mínimo sobre um suporte frágil.

O título da mostra, Os Nossos Dias, remete para a barreira linguística que o artista pretende vencer através de uma telenovela portuguesa que vê frequentemente mas remete também para a pertinência de pensar os dias de hoje e conseguir elaborar mais do que o óbvio. Isso implica olhar para a crise em todas as suas dimensões, olhar a rua de um ponto de vista etnográfico, meditar sobre o trânsito de seres humanos no planeta Terra e também a evolução do comunitário (presente neste sentimento de pertença mútua do título da exposição, através da palavra “nossos”).

Os guardanapos finos, mas em perfeitas condições, que nos agradecem a visita a um café e nos convidam a voltar não são uma folha de papel banal. São uma bandeira da cultura tipicamente portuguesa que segundo o olhar de Hatta é uma cultura de café, tal como a inglesa é uma cultura de pub.

Por um lado a leveza destes quadrados de papel quase transparentes fazem-me pensar no papel de arroz típico da arquitectura tradicional japonesa, por outro a sua fragilidade e natureza funcional rementem para o quotidiano passageiro, tão perecível que é extremamente fácil de esquecer na volatilidade das nossas vidas. Nesse sentido é bom notar que os guardanapos esvoaçam com o vento gerado pela passagem do observador tornando visível o fluxo de ar em torno dos nossos corpos em movimento.

Junto de um agradável “bom apetite” impresso numa das obras e que nos sugere a subsequente digestão do que Hatta pintou em cada um desses quadradinhos encontramos uma vasta diversidade de representações.

A primeira série de trabalhos que podemos ver nesta exposição remete para a caligrafia tradicional Portuguesa ou o que esta poderá ser aos olhos de um artista que cresceu com uma tradição caligráfica comparável à arte de manejar o sabre japonês. Nessas palavras impecavelmente pintadas a acrílico encontramos valores que o artista encontrou em Gaia escritos na pedra, mas que se repetem um pouco por todo o país, como por exemplo o da “Justiça”, “Verdade” e “Nobreza”… Estas palavras cujo significado cada vez é mais adulterado e cuja aplicação genuína rareia em todo o mundo, são sobre utilizadas na propaganda política através de “monumentos” onde a expressão “valores escritos na pedra” é encarada de forma literal. Yuga Hatta através de uma estratégia de apropriação leva-me a ter um olhar crítico através da simples mudança de suporte. Em vez de escrever de forma redundante na pedra, o artista usa algo descartável que todos nós usamos para limpar a boca depois de comer ou  beber e que, sem sequer pensarmos, atiramos para o lixo. É isso que poderia acontecer a estes valores se os guardanapos fossem usados em vez de preservados de forma imaculada. Será este o resgate que Yuga Hatta pretende fazer dos valores mais fortes das culturas tradicionais… apesar da sua fragilidade contemporânea ainda é possível que o gesto e a sensibilidade salvem o que há de melhor no nosso passado.

Sempre sobre guardanapos com inscrições diferentes no canto e que são frequentemente exclusivas do café onde foram recolhidos, Yuga explora com silhuetas figurativas momentos que me remetem para memórias de infância como o lançamento de um papagaio ou um relógio de cuco. Para mim essas representações ressoam com um momento “proustiano” em que ao tomar uma bebida quente um aroma ou um sabor nos fazem reviver um momento tão longínquo quanto perfeito… Só graças a esse estímulo conseguimos recuperar uma memória preciosa que nos permite por uns instantes vislumbrar a solução para a incontornável angústia existencial. Na cultura popular actual temos um exemplo desse mesmo tipo de processo no final do filme Ratatuille quando um crítico gastronómico angustiado reencontra a sua infância num prato tão simples quanto perfeito. É essa a experiência tão inocente quanto poderosa que o trabalho figurativo de Yuga Hatta nos oferece.

Nas ultimas três séries de guardanapos pintados encontramos o arquitectónico, o geométrico e o diagramático. Nesses trabalhos transpiram outros valores tão fundamentais como por exemplo o “less is more” do Miss Van der Roe comentando temáticas universais como a das construções humanas, geometrias de linhas e círculos ou a dinâmica entre o pensamento e o diagrama, ou seja, entre humano e máquina (uma temática fundamental para pensar a nosso futuro próximo).

Há mais três guardanapos com caligrafia mas que dificilmente podemos enquadrar nestas séries onde podemos ler “olho em bico”, “fui ao centro de emprego” e “almocei com a minha mulher e com a sua mãe”. Todos eles rementem para um apontamento provavelmente autobiográfico e diarístico que nos retratam facetas físicas, emocionais e sociais da vida do artista.

É de notar no entanto que o trabalho “Olho em bico” carece de uma análise mais cuidada. Primeiro baseia-se na expressão idiomática “de olhos em bico” que é usada para expressar um espanto e surpresa extremos. Essa referência deve-nos fazer pensar na importância da frase estar no singular, passando a representar a aproximação linguística do artista à língua Portuguesa e às frases que ouviu com maior frequência, fornecendo-nos eventualmente de forma inadvertida um retrato sociológico que denuncia uma cultura ainda muito pouco habituada ao diverso.

Como migrante Yuga Hatta é um verdadeiro cidadão do mundo, não só por já ter vivido em três continentes diferentes antes dos 30 anos e múltiplos países na Europa, mas principalmente pela sua metodologia de trabalho que passa frequentemente por residências em países distantes e desfavorecidos onde a partilha intercultural e envolvimento com a comunidade local estão no âmago da sua produção artística.

É dentro desse espírito que a montra que preparou para a MUTE ganha tanta importância, através do trabalho Imigrantes. Novamente uma pista para pensar um mundo migrante e as reacções menos positivas que surgem à partilha de um território com “não cidadãos” que de alguma forma todos já foram. É nessa obra que Yuga Hatta dá corpo escultórico e substância ao rasto de vários aviões sobre um céu azul fazendo-nos viajar entre a nossa imaginação infantil de uma nuvem feita pelo avião e o nosso rasto enquanto seres humanos que é certamente tão impermanente quanto essa linha que ganha espessura no tecto das nossas vidas e rapidamente se dissipa.

É então nessa anamnese que Yuga Hatta nos lança nas nossas memórias mais apagadas, nos põe em contacto com os nossos “desconhecidos conhecidos” (os lacaninanos “unkown knowns” de Slavoj Žižek) e até nos leva a questionar, de forma verdadeiramente platónica, quanto de tudo o que conhecemos hoje já não teríamos conhecido mesmo antes de nascermos.