(De)com-posições de um diário:
Estados terminais da intimidade

“[…] mergulha nos interiores sem cortinas,
bem iluminados, onde cada um parece ocupar-se
com a sua intimidade como se não fosse visto por
milhares de viajantes”

(Roland Barthes)[1]

Falar da exposição de Jorge Leal (Without drawing a day is lost) apresentada na Mute é revelar o desejo e a intimidade – ao mesmo tempo que se sublinha a natureza, a beleza, o corpo, as palavras e as coisas, no que à vida/criação diz respeito. Desenha-se e regista-se, entre folhas, o corpus representacional de momentos/mementos, sentimentos, movimentos, articulações e desarticulações num cunho que “[…] corresponde precisamente ao carácter provocante que a vida inteira e a obra manifestam”[2]. Expressão que brota de uma mão-viajante que não cessa de forjar espontaneamente o quotidiano – uma espécie de mão que se move, percorrendo e inaugurando o caminho, desdobrando-se na escrita, no traço, no encontro com o outro e consigo mesmo, através das “marcas manuais” (Deleuze) deixadas na folha em branco – sem margens e sem limites.

Porque, na realidade, a sua obra gera uma estrutura de acontecimentos, instaurando através de micro acontecimentos, outros e novos sentidos, a partir do espectáculo da vida e do mundo. Como acontece, por exemplo, com a plurissignificação dos pés, retratados pelo artista, que vagueiam subtilmente por folhas soltas, pés igualmente soltos de um corpo que não está lá – deixando, deste modo, um rasto que evidencia e ilustra uma ausência, uma fissura, através da qual o espaço da criação nos remete para o universo da imaginação-invenção, entre o que é visto e o que se esconde.

Podemos então imaginar que, é neste espaço da representação (do manifesto e do oculto – do visível e do invisível) onde se situa o mapa-mundo de um eu [artístico] fragmentado por muitos lugares, proximidades, continuidades, intensos rostos, inflamados corpos,… – expressando posições e composições dos sítios [conforme as demais formas de ver-fazer-ser] onde permanece o intenso compromisso com o desenho, tão importante na formação do pintor, diria Almada negreiros na sua conferência intitulada “cuidado com a pintura”[3].

Apropriando-nos desta ideia, no caso de Jorge Leal, não diríamos “cuidado com a pintura”, mas sim, reparem no desenho. No desenho, no esboço, no traçado, na espessura, e na cor que revelam um espaço de intimidade. Espaço esse, que é desvelado e invadido pelo olhar expectante e excitante do sujeito observador perante o “efémero […] exaltado em tons provocatórios”[4] das suas composições. Mas, afinal, o que vemos? Um movimento desejante que se dinamiza num processo de produção-erotização entre pernas, vales e montes, rostos e lábios, orifícios e vulvas, seios e picos, nádegas e curvas, e erecções que respiram e transpiram através dos poros da pele para o papel – modulando e vertendo sobre ele – o líquido que compõe o tecido da obra.

Membrana húmida que destila prazer e gozo, sob o estímulo do deleite da visão e da mão, ou ainda da boca (como se pode ver nalguns desenhos), numa espécie de poder “ejaculatório do olhar”[5], como aponta Bresson, ou de um “sémen óptico”, diríamos nós, que, derrama e ergue toda a força erotizante e significante do acto criativo, num puro momento/movimento de penetração e recepção.

Membrana, tecido, pele ou papel onde tudo flui, como a palavra que sai da boca em tom de sugestão (The advice) que, anuncia e dissemina o discurso corporal, a linguagem da pele, sobressaindo e eclodindo no desenho. No fundo, o desenho é a pele onde vive o seu autor. É precisamente este convite que o artista nos faz: habitar a sua pele, nem que seja por uns instantes, numa coabitação com as suas formas, dando-nos uma porção de si, e, promovendo o encontro de dois “[…] no cruzamento ou não-cruzamento dos olhares[…] [e na] fascinação pela vista do outro[…]”[6]. Deste modo, Jorge Leal convoca-nos para o interior/seio da sua obra, que vai par além daquilo que é visto – para uma parte do mundo que contém um si e, na verdade, que contém um nós – todos nós.

Conta-se, assim, a todos nós, uma história descrita em desenho que se inscreve num diário. Mas, não estaremos a ver mais do que um diário? Na verdade, vemos mais do que um, mas antes de considerarmos essa evidência, abordaríamos a questão de uma outra maneira: o que nos parece existir é um único diário que se decompõe em vários diários expostos. A fazer lembrar um mosaico onde as extremidades das folhas desparecem fundindo as suas arestas numa perfeita conexão e proximidade. Correlação de fragmentos do discurso e do curso da vida, onde tudo (ou quase tudo) se tece, se entretece, e se desenha.

Em jeito de conclusão, gostaríamos de terminar fazendo uma brevíssima alusão ao título desta exposição (Without drawing a day is lost). Jorge Leal conduz-nos numa profunda reflexão sobre a importância do desenho. O desenho enquanto imperativo essencial à criação artística, tão essencial como inspirar-expirar. Na sua ausência, os dias transformar-se-iam na ordem da perda existencial, de uma vida errante, sem sopro e sem o fazer e o ser dos dias.

 

 

[1] Roland Barthes, Fragmentos de um Discurso Amoroso, Trad., Isabel Pascoal, Lisboa, Edições 70, 2006, p. 61.

[2] Georges Bataille, A literatura do mal, Trad., António Borges Coelho, Lisboa, Vega, 1998, p. 94.

[3] Almada Negreiros, «Cuidado com a Pintura», Obras Completas: Textos de Intervenção, Vol. VI, Lisboa, INCM, 1993.

[4] Mario Perniola, A Estética do Século XX, Editorial Estampa, p. 176.

[5] Robert Bresson, Notes sur le cinématographe, Paris, Gallimard, 1975  p. 24.

[6] Jacques Derrida, Memórias de Cego. O auto-retrato e outras ruínas, Trad., Fernanda Bernardo, Lisboa, FCG, 2010, p. 111.