Lugares revelados

Entre di(visões)

 

“[…] vivemos num mundo que ainda não aprendemos a olhar.

Temos que reaprender a pensar o espaço […]. O lugar […] é simultaneamente princípio de sentido para aqueles que o habitam e princípio de inteligibilidade para aquele que o observa”

 (Marc Augé)[1]

Presente na Mute – Topofilia #2 de Filipa Reis é uma reflexão permeada pela imagem singular que expressa o sentimento de presença, convocando a referência da identidade cujo vestígio é o próprio lugar.

Indícios que agenciam e ampliam a dimensão de um existir, onde se criam condições para “[…] uma memória que se liga a certos lugares e contribuiu para o reforço do seu caráter”[2] afectivo e temporal. Para a invocação da passagem de um quotidiano que desliza pelos cenários captados, em especial pelos interiores da casa, entre o lavar da loiça e o estender da roupa, entre o fixar dos livros que carregam as prateleiras ou que pesam empilhados o estrado do quarto, onde se faz e desfaz a cama. Movimento de repouso e respiração de um quotidiano privado, que se torna presente estático na estrutura temporal da imagem. Estrutura, parede ou assolhada atravessada (como se alcançássemos o ponto de vista de quem tudo vê) que revela e partilha hábitos, prazeres, sabores e dissabores, sossegos e desassossegos, desvendando e partilhando esse topos-intimo do sujeito com o mundo.

Dito de outro modo, demonstrando um micro-topos que se configura no macro-topos que é o mundo repleto de identidade cultural e social, incorporando e criando toda uma história de vida acolhida e sedimentada por quem aí reside, ou por quem aí passa, mas sobretudo pelo modo específico de ver da autora que, implicado na experiência do mundo, constitui o seu objecto de reflexão e criação, “[…] na constituição de uma visibilidade nova […] que se dá a um olhar formado numa visibilidade diferente”[3]

Por outro lado, é nessa visibilidade que a exposição de Filipa Reis segue um percurso para lá do espaço celebrado e capturado no interior da habitação, dando deste modo ensejo ao aparecimento do que está fora. De um outro lugar que não é indeterminado, pois é nele que se produz o espaço público, os vínculos e os papéis sociais, em suma, um conjunto de práticas e regras de civilidade numa relação de alteridade.

Neste seguimento, este espaço exterior pode ser também entendido como elemento instaurador e edificador, visado pela imagem destacada deste lugar fundado e animado pela figura clássica da natureza – a árvore – desnudada numa visão (re)vestida e investida pela fachada do prédio que recolhe e acolhe, entre paredes (forradas a azulejo) um espaço de proximidade e de intimidade na esfera do dia que, quase sem nos darmos conta passará a noite. Noites e dias que passam e que duram; acabam e recomeçam, produzindo a trans-formação dos locais e ambientes, bem como da existência humana ou ainda, da própria natureza personificada no instante apreendido pelo manto de folhas caídas que mantêm a sua pigmentação preservada na imagem-tempo.

Ora, reforçando este espaço exterior através do lugar habitado que, como já vimos, se encontra delimitado pelas paredes numa espécie de cisão com o espaço publico, é interessante constatar a forma como ele interfere, ou melhor dizendo, participa implicitamente no interior deste local ocupado. Talvez valha a pena perguntar de que forma. Pelo registo simbólico que nos transporta para o universo do imaginário presente na figura da janela que evoca abertura. Intente-se, por isso, nessa abertura por onde o espaço interior das divisões da casa é aclarado pela sua chegada, numa incursão do exterior para o interior, através do ponto de luz disseminado que evidencia desvelando não só o que está aí – mas constitui essencialmente uma “mediação […] que aumenta a legibilidade do visual”[4]. Como se a nossa mão-visão possuísse uma lanterna que nos conduzisse pelos recantos da casa, explorando o seu interior e trazendo luminância/clarividência ao espaço fixado pelo registo da imagem, entre o local interior e exterior personificado na abertura da janela.

Movimento que se estende na relação com o carácter de transitoriedade e de continuidade do espaço – seja pela janela de uma cozinha, de um quarto ou de um escritório que recebe do exterior a luz natural; seja pelo interior que comunica e observa o lugar exterior; seja ainda no próprio interior da casa onde o tríptico-espelho arrasta irresistivelmente a nossa visão-curiosa pelo fluxo e reflexo tripartido, dando a ideia da existência de três quartos contidos no próprio lugar onde apenas existe um.

Por fim, uma chamada final que surge pertinentemente de uma cabine telefónica. Ou serão duas? Tudo indica que sim, duas cabines acopladas (dando a ideia de uno) que no espaço do nosso imaginário, recupera a imagem do coração – laranja por sinal – tornando-se assim, um forte atributo e contributo para invocarmos a metáfora do amor. Do amor ao lugar e a tudo o que nos faz recorda-lo. No fundo, é do afecto, do amor e da ligação ao lugar que emana a noção de topofilia, presente e revelada neste lugar da imagem.

 

[1] Marc Augé, Não-Lugares: Introdução a uma antropologia da sobremodernidade, Tradução de Lúcia Mucznik, 2ª Edição, Venda Nova, Bertrand, 1998, pp. 43 e 58.

[2] Idem, pp. 65-66.

[3] Jacques Rancière, O destino das imagens, Tradução de Luís Lima, Lisboa, Orfeu Negro, 2011, p. 107.

[4] Susan Sontag, Ensaios Sobre a Fotografia, Tradução de José Afonso Furtado, Lisboa, Dom Quixote, 1986, p. 15.