O paradoxo (não) pode esperar

 

O hábito e a novidade são dois modificadores da sensibilidade estética e pesam com extraordinária força sobre os nossos juízos, operando quase sempre com influência contrária. Na História da Arte, como no amor, existe uma virgindade que é tesouro precioso e fonte abundante de alegrias. Muitas vezes o novo e o inesperado exercitam uma tal fascinação sobre nós, que nos fazem confundir o novo com o absurdo. É porém o vulgo que comete este equívoco grosseiro, com o qual especulam as indústrias da arte. Muitas vezes o novo e o absurdo somam-se ou multiplicam-se por consenso de todos. Quem nunca viu o urinol de Duchamp, nem as peças de Brecht, experimenta sempre uma forte emoção estética, quando pela primeira vez contempla essas obras absurdas.

O trabalho que Simão Costa apresentou na MUTE é o resultado de encontros levados ao extremo que o forçam a criar o novo. Experiências que accionam a diferença, aumentam a potência de criar e promovem novos sentidos e perspectivas. Os diversos materiais, contextos, suportes, formatos escolhidos, embora representem uma atitude marginal  em  relação  à  criação  artística,  estão,  como  é natural  que  assim  seja, em perfeita  sintonia  com  a  variabilidade  das  proposições  estéticas.  É  mesmo  possível afirmar que todos eles se exercem segundo um princípio de pura integração, mas integrando-se, o artista vive uma forma de arte. As suas obras, compostas de partes reunidas, formam um todo e apenas como todo podem ser usufruídas na sua amplitude artística. Deste modo, a fruição das obras só consegue existir enquanto permanecer a unidade da obra artística. Destruída esta, aquela consequentemente desaparece. Em paralelo e sobre esta base é fundamentada uma nova ordem das coisas apoiada em renovadas sonoridades. Desordena-se o existente e em contrapartida procuram-se outras formas de ordenação. Uma espécie de destruição acaba por impor-se como uma base de garantia que possibilita a futura aparição de novos registos sonoros. Não há em Simão Costa uma gratuitidade de destruir, porque dentro de si transporta já tudo aquilo que pretende colocar no lugar da coisa destruída. O artista destrói para poder inventar de novo. É através de “pastas sonoras orgânicas” que procura desbanalizar o banal. A partir do fenómeno audível, retira um bloco de sensações, o seu, tornando-o durável. A sua motivação positiva está no espaço liso1 (vectorial, projectivo ou topológico) sem centro e repleto de múltiplas direcções expressivas, velocidades infinitas. Direcciona-se para algo que possa potencializar a singularidade/originalidade e unicidade dos objectos/coisas em detrimento da massificação e industrialização dos objectos. Deleuze na obra “O que é a filosofia” [2], sustenta que a “ arte é a linguagem das sensações”, sejam sensações visuais, auditivas, palpáveis, olfativas, tácteis: sempre sensações. O artista compõe e sonoriza sensações a partir das suas próprias sensações dando-lhes uma certa autonomia, uma auto-suficiência…uma vida própria que as afasta, paradoxalmente, da percepção e dos sentimentos humanos e é preciso perceber que a novidade de uma coisa paradoxal é já um grande coeficiente de paradoxo. Simão Costa desestrutura os nossos sentidos, ora cruzando-os ora paralisando-os. Atrai-lhe o som, a relação de vários planos sensoriais, os intervalos [3] que neles podem existir, os audíveis e os não audíveis, pois quando todos os sentidos se igualam num só registo, resta o absoluto silêncio. A proximidade aos sentires é notória na procura de sonoridades extremamente finas nas suas obras, o seu engenho/teknè (aquilo que emerge da experiência) que empresta às suas “obras- máquinas”,  transmitem  uma espécie de leveza.  As  relações  entre o  peso/ruído  e a leveza/silêncio está sempre presente, ocorrem na superfície, na mistura, pois tudo está em relação com tudo em permanente mudança e a mesma coisa pode parecer-nos mais ou menos absurda segundo o estado em que se encontra a nossa sensibilidade.

 

O caruncho será subtil? Terá som? Como fazer de novos signos uma linguagem sonora, uma linguagem que faça sentido e faça o paradoxo esperar? Como transformar o encontro de um piano com uma vassoura, um amplificador, um altifalante de indução e um leitor áudio, numa possibilidade sensível? São exercícios espirituais sobre a “certeza incerta” wittgensteiniana que visam deliberadamente quebrar regras do senso comum. A partir do som, o artista cria uma fissura dentro de nós e em função de uma conjugação rizomática de sons, inúmeras essências que estavam cativas são surpreendentemente/absurdamente  libertas.  É  possível  que  muitas  vezes  esta experiência nos custe, mas uma coisa certamente fará: sentir de várias formas. A perspectiva rizomática remete ao múltiplo, uma repetição de frequência, de ritmo, de vibração, de ondas, de fluxos, sem fixação – puro devir, encontro de blocos de devires. A música assume aqui um grau de transcendência, que ultrapassa o sentido harmónico- melódico-instrumental, tradicional e liga-se a um registo gráfico de sonoridades, tonalidades. Todos os sons podem ser entendidos como música. O próprio barulho/ruído é musical: “é preciso que os ruídos se convertam em música”[4].  A noção de música é claramente alargada e os sons/ruídos/barulhos do mundo, tal como as próprias reacções sonoras fazem também parte da “obra-máquina”, pois também elas são parte do mundo desde que se apresente diante de um ouvido particular que se mostre sensível a signos sonoros extremamente subtis.

 

[1] Conceito que Deleuze retira de Pierre Boulez. “Foi Pierre Boulez o primeiro que desenvolveu um conjunto de oposições simples e de diferenças complexas, mas também de correlações recíprocas não simétricas, entre espaço liso e espaço estriado. Criou esses conceitos e essas palavras,  no campo musical, e definiu-as precisamente  a vários níveis, para dar conta simultaneamente da distinção abstrata e das misturas concretas”. DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Mil Planaltos: capitalismo e esquizofrenia 2.Trad., Rafael Godinho, Lisboa: Assírio & Alvim, 2007, p. 607.

[2]  DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Trad., Margarida Barahona e António Guerreiro. Editorial Presença: lisboa, 1992, p. 155.

[3] “Diante de todo o sentido do decurso musical decidia-se irremediavelmente sobre a base dos intervalos: o «ainda não», o «agora» e o «depois», o prometido, o realizado e o pretendido; a medida e a profusão, o permanecer na forma e a transcendência da subjectividade musical”. ADORNO, T., W., Filosofia da Nova Música, Trad., Magda França, São Paulo: Perspectiva, 2004, p. 65.

[4] BRESSON, Robert. Notas sobre o Cinematógrafo. Trad., Pedro Mexia. Porto: Porto Editora, 2000, p. 25.