Construções e dispersões figurativas

 

O prazer no absurdo. — Como pode o homem ter prazer no absurdo? Onde quer que haja risos no mundo, isto acontece; pode-se mesmo dizer que, em quase toda parte onde existe felicidade, existe o prazer no absurdo. A inversão da experiência em seu contrário, do que tem finalidade no que não tem, do necessário no arbitrário, mas de modo que este processo não cause nenhum mal e seja concebido apenas por exuberância — isso deleita, pois liberta-nos momentaneamente da coerção do necessário, do apropriado e experimentado, que costumamos ver como nossos senhores implacáveis; brincamos e rimos quando o inesperado (que geralmente amedronta e inquieta) se desencadeia sem prejudicar. É o prazer dos escravos nas Saturnais.

Nietzsche, Humano demasiado humano, fragmento 213

 

Rodrigo Tavarela Peixoto, fotógrafo português, que expõe regularmente desde 1999, foi o artista escolhido pela MUTE para encerrar o ano galerístico. CONSTRUCTO foi o nome que decidiu dar à sua exposição. Logo no cartaz de inauguração explica o seu propósito: “provar, através de várias técnicas que Vladimir Ilitch Lenine é o mais alto de todos e que a relação Difusão-Dispersão é paradoxal entre outras verdades”.

Numa visão superficial, somos levamos a concluir que o artista pretende criar um agenciamento entre a fotografia e a ciência e a política, mas o termo escolhido para dar nome à sua exposição – CONSTRUCTO – encaminha-nos para algo um pouco mais profundo. O termo escolhido enuncia verdadeiramente a essência deste seu trabalho; na realidade ele visa dispor em séries um conjunto de fotografias segundo uma determinada regra. Pretende que o expectador consiga fazer uma construção daquilo que observa e daquilo que lê nas fotografias expostas, sempre mesclado com um toque de ironia e absurdo. Este é sempre o resultado de um confronto entre a racionalidade e a irracionalidade (nós e o mundo) e de uma eleição, e por isso, quanto o artista se ergue acima da média vulgar, e rompe a linha da lógica vital, distorce o equilíbrio do sensato, proporciona-nos a admiração, transtorna a ordem dos hábitos adquiridos e surpreende pelo não usual, pelo inqualificável, o nonsense. A mesma coisa, porém, pode parecer-nos mais ou menos absurda, segundo o estado em que se encontra a nossa sensibilidade, segundo o ambiente que nos circunda, e outras tantas circunstâncias. As duas séries de trabalhos que apresenta são exemplo. Uma a cores composta de sete fotografias inspiradas em Alphonse Bertillon, criminologista/fotógrafo francês muito influente que criou o sistema de identificação fotográfica policial, onde mede e compara várias estátuas vulgares possíveis de adquirir numa qualquer feira, com figuras históricas mundiais de proporções clássicas, fundindo surpreendentemente um certo minimalismo com o kitch das imagens/figuras que apresenta; e a outra a preto e branco, constituída por um conjunto de textos científicos manipulados, associados a uma fotografia, com o propósito de iludir o espectador da sua veracidade.

A fotografia é a arte que capta o instante. Roland Barthes em 1980 na sua derradeira obra em vida “Câmara Clara” traduz esta forma de expressão como transmissora da ideia de morte, uma vez que na imagem está gravado um momento imutável que jamais voltará a existir, ou seja, um passado (isto foi), mas uma obra/uma fotografia jamais está acabada. O artista nesta exposição deixa um rasto para o observador/espectador. Não expressa para si, abre o seu Mundo ao Mundo do outro, deixando o papel da intelectualização imaginária e o prolongamento da obra a esse outro. Neste trabalho a ironia funciona como um instrumento de comunicação utilizada para criticar ou questionar o senso-comum. Visa o pensamento fora do saber[1], fora das formas instituídas que o aprisionam/interiorizam e por isso trata-se de pensar fora do poder. O poder sedentariza e fixa uma origem, fixa uma finalidade e estabelece uma relação entre a origem e o fim, que é aquilo a que chamamos bom senso ou como diria Deleuze “linhas rijas”[2]. Na série de sete fotografias a cores onde faz a “avaliação do tamanho histórico através da representação comum”, simboliza ironicamente os três grandes poderes do mundo (as três grandes verdades do mundo): a religião, a política e a ciência, para deles extrair conclusões completamente aleatórias e absurdas. Rodrigo Tavares Peixoto não quer ficar nos objetos em si, quer quebrá-los e recorrendo a um conjunto de técnicas, inventa uma série de novos processos criativos para realizar a sua vontade de arte.

 

Na série “como pode ver na figura”, não se vislumbra uma ideologia ou uma infraestrutura; não há o subentendido nem o sobre-entendido; os significantes hierárquicos das proposições numa linha vertical e os significados laterais de uma estrutura estão deslocados do referencial do mundo ou da natureza. Em vez disso o artista opta por uma forma de enunciado que faz a conexão entre todos os pontos singulares e problematiza as noções de verdade e de saber a partir das condições que fazem com que algo seja dito ou avaliado como verdadeiro. Quem diz a verdade? Há conjuntos de regras de produção da verdade nos quais esta é uma construção e outros em que ela não o é. Rodrigo Tavares Peixoto a partir de um conjunto de procedimentos que têm como objetivo conduzir a um certo resultado, que pode ser considerado, em função dos seus princípios e das suas regras de procedimento, válido ou não, lógico ou não, alcança neste trabalho a sua verdade.

 

[1]  Na obra As palavras e as coisas, Foucault define o saber como a forma do visível e do dizível.

[2] Entre várias obras, ver em Gilles Deleuze, Cinema 1- Imagem – movimento, Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 73.