de 17 de Maio a 15 de Junho – Catarina Patrício, Filipe Pinto, Paulo Lisboa, Ricardo M. Geraldes e Tânia da Fonte

Talvez valha a pena começar por decompor o título da exposição que aqui reúne os novos trabalhos de Catarina Patrício, Filipe Pinto, Paulo Lisboa, Ricardo Geraldes e Tânia da Fonte: Para além do zero e do um. Os três primeiros termos da frase («Para além do») remetem-nos para o título de uma célebre obra de Nietzsche: Para além do bem e do mal. Desenganem-se aqueles que julguem estar perante uma simples blague: o trocadilho é significativo, indicando – através do recurso ao advérbio «Para além» – que aquilo que neste âmbito se procura é o ponto no qual se dá a superação da oposição existente entre dois elementos. Os quatro últimos termos da frase, esses, dizem-nos quais são esses dois elementos, nomeadamente: o «zero» e o «um».

Lido assim, o título desta exposição parece revestir a forma de uma questão, que pode ser formulada do seguinte modo: para além do zero e do um, para além dos dois dígitos que regulam a encriptação binária da informação que vai circulando no quadro da tecno-cultura global (e global a tal ponto que já não conhece margens ou confins…), o que há? A resposta é óbvia: o dois e a diferença infinita que ele representa. Parafraseando: aquilo que há é uma multiplicidade (de maneiras de dar a ver, de dar a sentir, de dar a pensar…) que resiste à codificação e, portanto, à domesticação cultural. É precisamente essa multiplicidade que, entre o desenho, a fotografia, a instalação, a performance e a projecção, é procurada por cinco autores que – na ausência de um programa comum – a encontraram na figuração conjunta daquilo a que poderíamos talvez chamar «o mundo do depois»: do depois do humano, do depois do trabalho, do depois de uma linguagem que se quer imune a ambiguidades de ordem política e a diferentes possibilidades de leitura. Escusado será dizê-lo: a unidade que as suas obras compõem é, para falarmos com Hegel, uma «unidade diferenciada», que se alimenta da própria diferença daquilo que unifica. No caso vertente: as diversas propostas estéticas que nos são lançadas pelos cinco membros deste bando. Passemo-las brevemente em revista.

Sob a assinatura de Catarina Patrício, encontraremos três desenhos feitos a grafite e a carvão sobre papel, que assentam numa técnica de montagem popularizada por William Burroughs: a do cut-up, que procede pela combinação de inscrições distintas. Aqui, essas inscrições são as imagens cinematográficas que a autora faz colidir numa mesma representação, para – através da sua síntese dialéctica – produzir uma nova unidade de sentido. Assim acontece em A hora do cometa, que, sobrepondo uma das últimas imagens do Damnation (1988) de Béla Tarr a um dos décors do Blade runner (1982) de Riddley Scott, nos instala no interior de um universo tão futurista quanto decadente, que nos obriga a encarar a possibilidade (iminente?) da extinção da era do humano.

Bem diferentes são as cinco novas peças que Filipe Pinto traz a esta exposição. Trata-se de quatro grafites sobre abat-jours e de um tapete, que atestam do seu desejo de reflectir sobre a linguagem, chamando a nossa atenção, quer para a sua utilização política no contexto do quotidiano, quer para a sua constitutiva ambiguidade. Por exemplo: para o facto de que a interpretação do sentido de uma palavra grafada depende, inevitavelmente, do particular ponto de vista adoptado pelo seu leitor. Prova disso é, sem dúvida alguma, o tapete em cuja superfície o autor inscreveu uma palavra que se presta a uma dupla interpretação, e que engendra um jogo perspéctico que se quer indecidível.

O trabalho que Paulo Lisboa nos apresenta, esse, procura declaradamente sondar o funcionamento semi-autónomo dos dispositivos de projecção. O que temos aqui? Uma instalação composta pelas projecções de luz geradas, numa mesma tela, por dois projectores de slides de 35mm que, de um modo contínuo, vão focando e desfocando os objectos estranhos que o autor cuidou de introduzir no seu interior. A saber: duas esferas de quartzo cujas imperfeições vão sendo tentativamente captadas em profundidade pelos dispositivos, que, nesse movimento, farão nascer na tela as imagens (contíguas) de dois corpos que se assemelham a dois planetas em constante processo de formação e desformação, aproximação e afastamento. O resultado é uma obra que extrai o maior partido possível das virtualidades dos materiais que agencia, e que nos submerge num mundo inquietante: aquele onde os objectos técnicos (já parcialmente emancipados) operam com o estrito mínimo requerido de intervenção humana.

Por seu turno, a série de fotografias realizadas por Ricardo Geraldes destacam-se, em primeira instância, por uma ausência que tornam quase tangível, ou melhor: por aquilo que, assumidamente, fazem questão de remeter para o fora de campo. Falamos do Homem, que nelas se manifesta (quando muito) de uma maneira elíptica, e apenas em virtude dos vestígios difusos que deixou no seu encalço. Na verdade, aquilo que mais cativa a objectiva da câmara do autor é, claramente, aquilo que antecedeu o Homem e que, com toda a probabilidade, há-de subsistir após a sua extinção. Mais precisamente: uma Terra pré-humana ou pós-humana que, neste âmbito, é surpreendida na sua expressividade bruta (o recorte de uma encosta, o «desenho natural» cunhado por um aglomerado de rochas…), por forma a sinalizar um lugar que resiste à dominação antropológica.

No universo do trabalho nos mergulha, por fim, a instalação que Tânia da Fonte forjou para a presente exposição. Tomando como motivo a actividade mineira, a autora organiza uma performance onde o trabalho se deixa considerar, quer enquanto exercício prático e fonte de subsistência (trata-se, antes de mais, de recriar a experiência da construção de um furo de sondagem), quer enquanto memória literária e fonte de inspiração (as páginas desenhadas de “A Mãe”, de Máximo Gorki, que ladeiam a caixa onde serão guardadas as amostras recolhidas na prospecção). Aquilo que fica é uma elegia dedicada a um mundo em que o trabalho dependia de um confronto físico com os objectos e com a Terra, e em que ele funcionava igualmente como a antecâmara de todas as inquietações revolucionárias.

Importa pois emendar aquilo que nas primeiras linhas desta folha escrevemos, dizendo agora que, afinal de contas, para além do zero e do um não há dois: há cinco que sabem bem o que «dois» quer dizer.

Vasco Baptista Marques


 Biografias:
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Catarina Patrício vive em Lisboa. Trabalha em desenho o espaço de tensão que se abre pelo corte e montagem de imagens. https://catarinapatricio.weebly.com/
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Filipe Pinto trabalha sobre linguagem e quotidiano; vive em Lisboa. http://www.filipepinto.weebly.com

Paulo Lisboa nasceu, vive e trabalha em Lisboa. Embora recorra a vários media, o seu trabalho apresenta-se frequentemente na forma de desenho ou projecções, onde aborda problemáticas relacionadas com a natureza da luz e a percepção da matéria. http://cargocollective.com/paulolisboa

Ricardo M. Geraldes recorre à fotografia para enquadrar um mundo pré-humano (que ainda existe) e um mundo pós-humano (a fazer-se). Nasceu em Lisboa, e por aí reside. https://ricardomgeraldes.weebly.com/
Tânia da Fonte vive em Lisboa. Trabalha sobre o terreno e a norma. Cada projecto resulta da sucessão de episódios e da adição de diferentes formas (performance, desenho, texto, vídeo, escultura).