Corpus Absurdos: rasgos de identidade

 

É preciso que, com meu corpo, despertem os corpos
associados, os “outros”, que não são meus congéneres,
como diz a zoologia, mas que me assediam, que eu assedio,
com quem eu assedio um só Ser atual, presente, como
jamais animal assediou os de sua espécie, seu território ou
seu meio
.[1]

 

Miguel Bonneville, conhecido pela sua diversidade expressiva, seja ao nível das artes performativas seja no desenho, na música e na fotografia, é um dos principais nomes de uma nova geração de artistas portugueses. O fim e o rapto (e outras histórias) foi o título que o artista definiu para a sua exposição no espaço da MUTE.

Se o fim tem como sinónimo o acabamento, o limite, a fronteira, já o rapto aponta-nos para o acto ou o efeito de arrebatar, de roubar uma pessoa por violência ou sedução. Bonneville pretende violentar sedutoramente toda e qualquer fronteira da consciência, raptando-nos para o seu mundo muito próprio. Um mundo onde a realidade e o mito se cruzam e se constituem em muitas das “outras histórias” que nos quer anunciar. A associação “pensamento e corpo” é um dos pontos principais desta exposição. O (seu) corpo é figura dominante, mas não o corpo da sua história pessoal. O (seu) corpo força o pensamento a pensar. Absurdo dos absurdos, habituámo-nos a aceitar como verdade que o pensamento funciona sempre por sua boa vontade, mas o artista inverte a função do pensamento, forçando-o a pensar através de múltiplas atitudes e posturas do (seu) corpo – insónias, raivas, tristezas. Todas as linhas de errância – abstratas e difíceis – são, no trabalho do artista, devires intensivos que algumas vezes se fundem com o corpo de animais para assim ultrapassarem o empírico e formarem um plano virtual-real próximo daquilo que José Gil define como experiência real. As emoções que o artista revela são “diferenças mínimas, o caos que fervilha microscopicamente sob as grandes unidades vísiveis das frases e dos gestos; é o «não sei quê» que se exprime através ou por entre as figuras macroscópicas” [2]. Tomando como base a sua presença/imagem nas telas que expos na Mute, podemos ser transportados para o mito do jovem Narciso. O narciso, flor do mesmo nome em que se transmutou o homem, que adormecia os seres no seu último sono e que se esgotava na sua própria contemplação (narcisismo material). Será esta autocontemplação a revelação de uma alma inquieta? Uma tentativa de expressar o seu “eu” de forma autêntica[3]?

Ao desapossar-se do humano em si e da sua história pessoal, desfaz-se da consciência e atinge paradoxalmente a significância, o inconsciente desumanizado, “afinal de contas, as artes visuais não são feitas para confortar a razão. E aceitar este paradoxo, ajuda grandemente a apreciar a arte da nossa época”[4]. É neste confronto consigo próprio que se faz anunciar o outro ponto fundamental desta exposição: a transição. Bonneville, ao rasgar a sua personalidade, a sua identidade, o seu passado, os esquemas morais/sociais estratificados e rígidos, acaba por criar as condições necessárias para produzir a sua arte. O (seu) corpo transita para um conjunto de potências/experiências da vida e a arte manifesta-se num permanente recomeço de experimentações de vida. Recomeço físico, psíquico e ontológico: “Uma subtil alquimia dos signos então se impõe (…) que é imediatamente vivida como uma metamorfose psíquica do ser falante entre as duas bordas do não-sentido e do sentido, de Satã e de Deus, da Queda e da Ressurreição”[5]. É precisamente neste recomeço/ressurreição que encontramos as diferenças/as intensidades na obra de Bonneville e o (seu) corpo exaltado que se despersonaliza para poder expressar somente afectos. Definitivamente não existem começos e recomeços absolutos…

 

[1]  PONTY, M. O olho e o espírito. 6º Edição, Lisboa: Vega Passagens, 2006, p. 276.

[2] GIL, J., O imperceptivel Devir da imanência. Lisboa: Relógio D´àgua, 2008, p. 64.

[3] Um dos principais suportes da arte da primeira década do seculo XX tinha sido o conceito de “expressão” que veio a assumir uma variedade de formas, mas a única coisa que ele precisava era de uma noção de “eu” do artista. Por sua vez, este “eu” tinha que ter os atributos de autenticidade. HARRISON, Charles and WOOD, Paul. Art in Theory 1900-2000: An Anthology of Changing Ideas, Blackwell publishers inc. 1999, p. 125.

[4] MILLET, C., Arte Contemporânea. Lisboa: Instituto Piaget, 2000, p. 117.

[5]  KRISTEVA, J., Sol Negro: Depressão e melancolia. 2ª Edição, Rio de Janeiro: Rocco, 1989, p.98.