Sob(re) a Neve…traço…
O limite, o tempo, a morte

 

“[…] sobre uma folha ou sobre uma frase, sobre uma paisagem
ou sobre uma pura ideia. […] o espaço e a cor, o puro jogo
de uma imaginação em absoluta liberdade”

 (Eduardo Lourenço)[1]

Na sequência da mostra (Tocar a neve e sentir as nuvens) patente na galeria Mute – em que Ramón Peralta nos apresenta uma visão única de contemplação e introspecção, “[…] criando um minúsculo elemento de um outro mundo: o mundo de imagens que se propõe sobreviver a todos nós”[2] – nasce o presente texto que pode ser visto como uma segunda exposição de uma reflexão, sobre os vestígios deixados pelo olhar do sujeito, de um sujeito que está aí no mundo – “vidente e visível”, relembrando Merleau-Ponty – enquanto produtor de sentidos.

É neste contexto generativo de sentidos, através das fotografias inauditas do fotógrafo-poeta que, se anuncia e preconiza a acuidade do toque[3], diante do indelével traço quase preto que marca estilisticamente a superfície branca. Lugar traduzido numa estrutura produtora de fluxos contínuos, através da relação entre aberto e fechado, movimento e quietação, representado pela força do traço (presença) numa paisagem branca (espacialidade). Suscita-se, deste modo, ora duração e eternidade, ora efemeridade e limite, num horizonte que evoca por um lado a natureza e, por outro, o processo de maturação do ser humano que se fixa, entre o movimento dos traços e a intermitência do olhar na textura que compõe a imagem.

Fixemo-nos, por isso sobre a imagem – sobre o manto branco, branco da luminosidade ou do vazio, que, inaugura uma certa abertura com a chegada deste traço. Na senda desta fenda engendra-se um novo espaço, quer pelas formas que se podem constituir/construir, quer sobretudo, pelo branco que é [aqui] o local de todas as marcas, de todos os vestígios.

Poder-se-ia considerar, ainda, que ele é a tela, a folha em branco, ou simplesmente a superfície viva e vital na qual, o traço há-de vir, advir sempre em devir, escrevendo e apagando, espécie de palimpsesto, as intensidades instaladas na obra pela acção da criação humana, natureza humana – natureza naturante, na expressão bem conhecida de Espinosa – feita de camadas, camada sobre camada, ou como aponta Deleuze a propósito do diagrama de Foucault de “superfícies sobrepostas, arquivos ou estratos”[4].

Neste seguimento-segmento, dir-se-ia que, a obra é [este tombo que guarda] cada coisa (res), cada vivência, cada pensamento, cada prazer, cada dor, e cada coisa, para voltarmos novamente à coisa, seja ela qual for, onde tudo começa. Mas, se a obra é este arquivo, se assim se pode dizer, de cada coisa vivida, como acabámos de ver, ela é de igual modo, “um meio de superar as limitações que esses constrangimentos impõem, […]”[5]. Uma forma de resistir aos limites, ao tempo e à morte. Suspenda-se a morte, diria Blanchot. Seja com o propósito de exorciza-la na sua inexorabilidade, seja como meio de perpetuar a presença de uma ausência rumo à eternidade, ao branco celestial, à coisa branca – a morte reenvia-nos, desde sempre, ao acto de querer representar e mimetizar.

Todavia, e sem querermos afirmar objectivamente que é esse o leitmotiv da obra de Ramón Peralta, diríamos que o branco seja ele visto como pureza, imortalidade, luminosidade, ou por outro lado, como vazio, limite e abismo – ele aparece-nos anunciado com o tombar da neve que recobre guardando a superfície transformada num manto branco (Tombo branco). É sobre as várias camadas de branco que reveste a superfície, ao mesmo tempo que oculta e revela sob a sua face a passagem da temporalidade que, a natureza deixa agreste e amenamente a sua marca.

Uma clara alusão ao ciclo da vida com o brando mover das estações, entre o desabrochar das flores (di-fusão das cores) e o cair das folhas secas e mortas que, do mesmo modo vão cobrindo a terra de outras cores (cores mortas e natureza morta), numa implicância permanente à convocação de um novo começo. Como, por exemplo, os vários começos tão bem retratados no soberbo filme do realizador sul Coreano Kim Ki-Duk, numa referência ao seu “Primavera, Verão, Outono, inverno… e Primavera”. Sugere-se a intensidade/brevidade de um tempo e de uma existência, sublinhada através da natureza onde tudo se perde, se ergue e se trans-forma. Ciclo de morfoses e metamorfoses numa passagem/paisagem do tempo entre a primavera e o inverno, o nascer e o morrer, e assim por diante. Processos bem presentes na arte, na criação de novos mundos, de novas paisagens quer seja pelo mimetismo do real, quer pelo desa(fio) da imaginação.

De uma criação imaginativa que cria e recria, produz e reproduz, funde e refunde transformando. Como é o caso da neve, transformando-se do estado sólido ao estado líquido, diluindo-se e exaurindo-se aos poucos em água, entranhando-se pelos interstícios da obra-terra, abrindo fendas, frechas, fissuras, rasgos, cicatrizes, linhas e marcas de uma constante e permanente passagem do tempo, bem como de uma reinvenção do ser na obra, que fabrica novos mundos.

 

[1] Eduardo Lourenço, O espelho imaginário:  pintura, anti-pintura, não pintura, 2ª ed. Aumentada, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1996, p. 29.

[2] Susan Sontag, Ensaios Sobre a Fotografia, Tradução de José Afonso Furtado, Lisboa, Dom Quixote, 1986, pp. 20 e 21.

[3] Veja-se o olhar táctil de que fala José Gil: “Quando um olhar se fixa num objecto no espaço, ele tende a tornar-se táctil: o olhar poisa sobre o objecto, coloca-se aqui ou ali na sua superfície como se tratasse de um corpo espacial, uma mão, um dedo”. José Gil, “Sem Título” Escritos sobre Arte e Artistas, Lisboa, Relógio d’Água, 2005, p. 174.

[4] Gilles Deleuze, Foucault, Tradução de José Carlos Rodrigues, 2ª Ed., Lisboa, Edições vega, 1998.

[5] Douglas, J. Davies, História da Morte, Tradução de Maria Augusta Júdice, Lisboa, Teorema, 2005, p. 125.