A cristalização do tempo
na pintura de Paula Prates

 

Neste corpo inédito de trabalho, Paula Prates explora a pintura de uma forma analítica, decompondo-a nos seus elementos mais fundamentais. Para isso torna cada pincelada um acto consciente e independente, garantindo assim que até a mistura de cores só acontece por sobreposição. Apesar de todo o controlo exercido pela artista, há sempre uma tensão entre a ordem e o caos tanto a nível de composição, como a nível das cerdas do pincel que se agregam e separam gerando diferentes padrões de pincelada. A transparência da tinta acrílica apresentada em camadas discerníveis, não só nos revela o processo de criação como nos obriga a observar o tempo, a repetição e a estrutura microscópica de uma pintura tremendamente ampliada.

Os únicos referentes reconhecíveis, e denunciados pelo título da própria exposição (Intrusão), são os cristais que significativamente partilham de múltiplas propriedades dos seres vivos, nomeadamente o facto de crescerem e multiplicarem-se. Estas características denunciam desde já a sua relação íntima com o tempo que é um conceito crucial na interpretação destas obras. Os minerais de que falamos resultam da repetição de estruturas atómicas, que acabam por desenhar as geometrias e arquitecturas que observamos a olho nu, funcionando quase como um representante palpável das dinâmicas do mundo invisível das partículas elementares. É desse processo que resultam composições quase abstractas onde a ortogonalidade impera apesar de nunca estar alinhada com o enquadramento ou com o observador, gerando portanto diagonais dinâmicas, ou seja, é-nos sugerido um movimento que implica um tempo e uma deslocação. Nos cristais a sobreposição de uma infinidade de camadas, de átomos e iões, emergem as formas muitas vezes transparentes e translúcidas que brincam com a luz gerando cores e reflexos que quase nos hipnotizam. Podem portanto ser sugeridas ligações à Op-art por se dar o caso das linhas paralelas estarem tão presentes, mas parece-me muito mais relevante a diagonalidade dessas linhas do que qualquer efeito fisiológico que possam ter no observador. A relevância do oblíquo prende-se com outra temática muito explorada pela a artista: a ruína. No caso dos cristais não é a destruição ao longo do tempo que gera esses ângulos mas o facto de um pequeno conjunto de átomos, onde se começa a formar o cristal, não obedecer à orientação da força da gravidade. É então o tempo de crescimento e não de destruição que origina esta ortogonalidade diagonal.

Algumas formas aparentemente abstractas podem ser vistas como ventiladores e respiradores da tecnologia actual, que a nível pictórico abrem espaços através dos quais podemos ver mais profundamente, penetrando com o olhar algumas das camadas pintadas. A relação desta exposição com os computadores não fica por aqui. A definição de múltiplas molduras que ecoam os limites do papel sugere-nos uma relação entre o omnipresente ecrã e a pintura. Nessa dinâmica é importante considerar-mos a sugestão de Derrida, das molduras enquanto espaço de transição e desagregação entre o trabalho e o mundo. Paula Prates tem a ousadia de sugerir esse processo dentro da sua própria pintura, não só representando molduras por ausência de tinta, como desconstruindo a obra para lá desses limites. Nessa denúncia da desagregação da pintura na sua periferia, conseguimos perceber que as primeiras camadas de tinta eram as mais abertas, fluorescentes e estridentes que com as velaturas subsequentes são suavizadas, não deixando de sugerir quase uma retro-iluminação pintada. É com essa paleta de cores cristalizadas, e tão iluminadas como as de um ecrã de computador, que a artista abre o nosso espaço psicológico para a possibilidade de um futuro emocional cheio de esperança, sugerindo subtilmente o seu estado intermédio de pintora portuguesa que oscila entre a paleta fechada de uma Europa fria e contida e uma África excessivamente quente e intensa. Tal como em Matisse essa paleta pode seduzir ou gerar dúvidas por estar dentro do que pode ser visto como decorativo, mas essa questão foi ultrapassada pelos próprios autores dessa crítica ainda no início do século XX, como é o caso do próprio Picasso. Hoje até o experimentalismo de Picasso e as cores contidas de uma arte conceptual podem ser vistas como decorativas, gerando um efeito de indiferença face a essa palavra. Nada é decorativo e tudo é decorativo num mundo pós-moderno.

Toda a leveza formal apresentada contrasta com o conceito de controlo do gesto pictórico consciente e com a definição de uma pintura que se analisa a ela própria, explicitando a origem de diferentes densidades, através de velaturas que se somam sequencialmente às anteriores. Tal como os átomos de um cristal que cresce por repetição, em torno dos centros de nucleação, transformando a matriz primordial num padrão, as obras apresentadas por Paula Prates crescem através de interpenetrações, desenhos definidos por ausência e fundos que não sendo brancos contêm os elementos necessários ao crescimento destas estruturas inorgânicas mas quase vivas.

Multiplicam-se na mente do observador as cores refractadas nas superfícies reflexas das pirites do Museu Nacional de História Natural que povoam o nosso imaginário infantil, mas é no conhecimento mais elaborado que encontramos o rigor de uma construção por vezes anamórfica mas que nos impõe uma perspectiva anamorfoticamente relevante. Nas semelhanças encontramos diferenças. Nas diferenças as semelhanças.

 

Manuel Furtado, 2016